Este episódio final é destinado a você, ouvinte do coração. Nurit faz aqui uma reflexão desse momento pós-pandêmico, em que mais que depressa tudo voltou a funcionar como antes, como se nada tivesse acontecido. Sem querer soar catastrofista, a autora e narradora desta troca de cartas disfarçada de podcast fala sobre a imprevisibilidade do momento em que vivemos e de tudo que vem pela frente. Ao final, ela lembra entretanto que o presente é uma máquina de fazer futuros e que recai sobre cada um de nós nos responsabilizar pela parte que nos cabe desse quinhão.
Neste episódio, o filósofo, professor e escritor Hilan Bensusan narra as duas interceptações das cartas escritas por Nurit, ambas igualmente publicadas no livro Cartas ao Morcego. Ele comenta sobre a coragem da remetente em escrever em formato de carta aberta, que segundo Hilan, é como olhar nos olhos do morcego. Para ele, o morcego fala nas entrelinhas e através das cartas de Nurit, comprovando que a correspondência é uma forma de contágio e que o simples fato de escrever uma carta já abre espaço para que haja ao menos uma resposta possível.
Dentre as ideias abordadas ao longo de todas as cartas, nesta última pode-se destacar a ênfase à metáfora do caleidoscópio. Nurit propõe que este improvável encontro entre humana e morcego pode servir como uma mudança de perspectiva, um giro no caleidoscópio que permita que fragmentos de diferentes cores se rearranjem e se justaponham propiciando uma nova forma de ver o mundo. A resposta que nos trouxe o João Tabebuia, impactante e reflexiva, põe em xeque nossa própria ideia de individualidade, que poderia vir a ser a origem do vírus do individualismo e da crise que enfrentamos.
Nurit começa a penúltima carta do livro falando de uma mensagem morceguística que lhe chegou em forma de um abrir de páginas nada aleatório do livro Las margaridas no tienen la culpa, de Teresa Mateo. Um aforisma em particular deste texto fala sobre “ser no lugar equivocado”, em vez de “estar no lugar errado”. Tal pensamento norteia a reflexão da remetente ao longo de toda a missiva. Na resposta, mediada pela Isabel Harari, o morcego se refere aos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e todos os aspectos desse terrível equívoco da humanidade.
Na carta deste episódio Nurit aborda a obsessão do homem com a tecnologia como uma solução para tudo, inclusive a crise climática. A palavra “homem” aqui não é dita ao acaso como uma generalização de nossa espécie, outrossim como um recorte específico sobre esta pequena parcela de alguns poucos membros de um seleto clube que pretende controlar o mundo, presente, passado e futuro, por meio do domínio de uma narrativa colonialista. Em sua resposta, vinda pelas mãos de Fábio Scarano, o morcego nos lembra que o mal não está na tecnologia em si, senão no mal uso que nossa espécie teima em fazer dela.
Nurit começa este episódio fascinada com a primeira resposta morcegal que chegou, com um inusitado endereço de e-mail (chiroptera@gmail.com) como remetente, numa clara alusão ao gênero científico ao qual pertencem os morcegos. Na sétima carta escrita por Nurit ao morcego, ela fala sobre como a ideia de separação dos organismos entre espécies faz com que os humanos, ou alguns deles, tendam a se considerarem como algo independente, separado do restante dos demais seres vivos, a quem chamamos de “natureza”. Em seu e-mail, o morcego confessa que só se deu ao trabalho de responder graças ao título que sua remetente se dá: ex-humana. Conta ainda que teve de cruzar o oceano até a Biblioteca de Coimbra, onde vivem seus parentes quirópteros, para enviar sua correspondência eletrônica.
Na sexta carta, Nurit fala um pouco ao morcego sobre os líquens, que enquanto associação entre fungo e alga, dão um bom exemplo do que pode se chamar de simbiose mutualística. Ela conta ainda que foi justamente uma mulher, Lynn Margulis, uma bióloga estadunidense, quem descobriu e propôs uma outra forma de compreender e classificar o mundo que nos rodeia senão com metáforas de guerra, tais como o parasitismo predatório. A resposta do morcego desta vez chegou por meio da Mônica Nogueira, concordando com a autora no sentido de que devemos sim colocar sob suspeita a ideia de que a competição é a força motriz da vida. O morcego nos lembra que nós também, assim como eles, somos ecossistemas ambulantes, compostos de bactérias, vírus e assim por diante.
Nesta nova epístola, a autora dedica um espaço para falar dessa característica híbrida do morcego, enquanto mamífero e ser alado, no imaginário popular ao longo dos tempos em diversos povos, desde alguns habitantes originários desta terra chamados de povo-morcego até o célebre homem-morcego de HQs e filmes, mais conhecido como Batman. A resposta, que veio por intermédio do Gilmar Terena, ainda que traga reflexões amargas, é otimista. Fala sobre a língua da terra, do tempo das florestas, dos rios e dos mares, e de quando essa linguagem ainda era compreendida por todos os seres.
A próxima carta começa falando de uma possível resposta cunhada no guano, que não seria nada mais que um amontoado de excrementos. Aqui a escritora e bióloga se debruça sobre esses excrementos enquanto meio e mensagem em si, desde seu uso tradicional como fertilizante até às mais recentes pesquisas que revelam diversas informações sobre o nosso passado por meio da análise desses vestígios. A resposta morceguística recebida pelas mãos da Adriana Ramos celebra o encontro entre as duas espécies, bem como reconhece e valoriza o esforço de se comunicar da remetente, além de aprovar a sua leitura do guano.
A terceira carta foi escrita às vésperas do primeiro carnaval pandêmico. Em um processo de desantropomorfização, Nurit propõe a si mesma a tarefa de pensar não “como um morcego”, mas “com o morcego”. Qual seria a melhor maneira de fazê-lo? Nessa empreitada, ela encara até mesmo o DNA dos vírus enquanto uma linguagem possível. Na resposta, que nos chegou pelas mãos do Paulo Malafaia, o remetente propõe um movimento contrário e se “desmorcegaliza” para, além do “pensar com”, contemplar a possibilidade de um “ser com”, ou “coese”.
A segunda missiva de Nurit ao morcego dá enfoque às interfaces entre estes e nós, seres humanos. Desde o espaço que ocupam no imaginário popular até um efetivo lugar na cadeia alimentar, como é o caso de populações que se alimentam da carne ou até mesmo do sangue de morcego. A resposta a esta carta chegou por intermédio de Maria Luiza Gastal, na voz de um morcego que vive na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra e aprendeu a ler enquanto devorava as traças que, como ele, vivem na biblioteca. O morcego compartilha conosco sua visão sobre a obsessão classificatória humana e aposta nos laços entre as espécies como uma possível saída deste impasse que enfrentamos.
Na primeira carta endereçada aos únicos mamíferos que voam, Nurit conta sobre o impasse enfrentado atualmente pela humanidade frente à crise climática, a destruição da natureza e suas consequências inevitáveis, como o surgimento de epidemias feito a do coronavírus. A resposta do outro lado, vinda pelas mãos de Juliana Radler, é dura e incisiva, mostrando o descontentamento do morcego com a proximidade forçada do estrago causado pelo Homo sapiens e sua ausência de instinto de sobrevivência.