Deuses, astros, poder político-econômico e o imaginário no período greco-romano e sua influência na literatura do Novo Testamento.
Uma conversa honesta, com toques biográficos e análise historiográfica da formação do pensamento evangélico brasileiro herança do trabalho missionário evangélico estrangeiro, sobretudo dos Estados Unidos e suas teorias que por quase dois séculos semeiam o imaginário religioso em solo brasileiro e ao redor do mundo.
Falamos como a tradução da Bíblia, movimentos políticos e missionários se encontram num fio condutor que envolve colonialismo, capitalismo e extrema-direita e a linguagem nas redes.
Entre essas culturas do Mediterrâneo e do Levante houve um momento em que era difícil a separação das cores púrpura e o tekhelet. Sendo que a primeira cor ficou com o uso restrito a quem pudesse pagar e durante os vários impérios da antiguidade, apenas a alta nobreza e posteriormente o uso fica exclusivo à realeza e ao palácio.
Na cultura dos hebreus essa cor sofreria algum tipo de especificidade para diferenciar-se dos demais tons de lilás dos cananeus da famosa cidade de Tiro que aprenderam dos outros povos do Mediterrâneo a extração de um pigmento de um caracol, o conhecido Murex Trunculus que estava presente por toda a costa mediterrânea. Deste caramujo era extraída a cor púrpura que logo ficou restrita e relacionada à realeza e à nobreza.
O processo de separação cultural, linguística, dietética e de elementos políticos dos povos cananeus e dos antigos hebreus envolveu um período de rejeição da cultura original do Levante, adaptação e apropriação com fatores diferenciados da cultura de origem. Nesse processo de apropriação houve a criação de histórias e mitologias que justificassem essa separação e distinção dos hebreus de seus vizinhos. Esse processo também envolveu historiografia e historiosofia que pudesse explicar tal distinção. Essa diferença não podia meramente acontecer por razões humanas, era preciso haver algo divino, fora do comum para que as gerações futuras não se aproximassem dos cananeus.
No períodopós-exílio quando o texto do Pentateuco foi compilado e organizado, uma das ordenanças da classe sacerdotal, os prováveis redatores da Torá. Os textos da Torá, marcam especificamente várias dessas diferenças dos hebreus com os outros povos cananeus, e relatam o possível porquê, como ordem divina para estas distinções. Voltando ao tema de nobreza e elite que nesse tempo eram compostos necessariamente pela classe sacerdotal e uma elite que coordenava e financiava a redação dos texto era que os sacerdotes usassem um tecido com uma que representasse o azul messiânico.
Criaram-se várias histórias sobre a origem desse azul messiânico, como a cor preferida do rei Davi, além de ser também a cor do trono do “Din” (julgamento) e simboliza o Shamayim (céus) pois, seria dessa mesma cor o trono de Javé. Os diversos tons de azul, mudam de acordo com cada escola de pensamento judaico. Em suma, esse azul messiânico e exclusivo dos hebreus, o tekhelet estava associado à realeza e à classe sacerdotal, que no pós-exílio também ocupou a função real/política nesse “novo Israel.” Até que chegassem os romanos, e instituíssem que esse azul, agora conhecido como púrpura seria exclusividade da nobreza romana. Os judeus, agora colonizados, não condiziam com o status de exclusividade para usar a tal cor. Por volta do século 5 E.C. Apenas o imperador podia usar a cor púrpura, no que ficou conhecido como a lei suntuária, o Sumptuariae leges.
Textos extra bíblicos como a mishnah, o talmude e reflexões de Maimônides trataram de explicar alguns dos mandamentos da Torá que apresentam esse azul messiânico. Bem como a sua origem, o mítico animal Hillazon. Como um segredo que perde pela história o Hillazon desapareceu e com ele a esperança do cumprimento do estabelecimento do reino sacerdotal com o azul messiânico e o trono de Javé.
No final do século 19 um rabino polonês seguiu em sua busca pelo Hillazon e pelo azul messiânico. Esse rabino chegou a dizer que sem que houvesse as roupas sacerdotais com o azul messiânico, tekhelet, o Messias não podia chegar. E ele como Elias, em sua busca estava preparando o caminho para a construção do terceiro templo e o estabelecimento do reino sacerdotal comandado pelo Messias e seu trono azul, tekhelet.
Mas o que era o Hillazon? Como todo o segredo antigo a ser decifrado, a busca pelo animal que supostamente traria o Messias, teve suas controvérsias e milhares de páginas escritas, em livros, dissertações e incansáveis debates entre vários segmentos judaicos.
הָאֱלֹהִים אֶל-בְּנוֹת הָאָדָם, וְיָלְדוּ לָהֶם: הֵמָּה הַגִּבֹּרִים אֲשֶׁר מֵעוֹלָם, אַנְשֵׁי הַשֵּׁם. {פ}
(Bíblia Hebraica – Texto Massorético)
“Os Nephilim estavam sobre a terra e aconteceu que os filhos de Deus [Elohim] deitaram-se com as filhas do homem e geraram filhos: eles são os herois, homens de renome.”
tradução de Gênesis 6:4 de Robert Alter. (versão em português, tradução livre)
Estamos no episódio 4 de nossa série Monstros Bíblicos. No episódio de hoje falaremos sobre os Nephilim. No mundo antigo em diversas culturas havia uma história sobre um dilúvio que inundou o mundo conhecido. A criação de histórias e mitos, na maioria das vezes serve como um recurso linguístico para explicar uma narrativa, e lidar com o imaginário de povos e culturas distintas.
A construção de histórias precisa de sustentação narrativa e também de justificavas para entrar no mundo da oralidade, onde verossimilidade poderia ser apenas um simples detalhe. No mundo do folclore/mitologia dos antigos hebreus também era assim. A história do dilúvio precisa encontrar um mote que fizesse sentido à audiência hebreia, permeada naquele momento pela idealização moral de uma desordem cósmica que apenas Javé, e Javé somente, era capaz de reordenar.
Não entraremos nos motivos teológicos do dilúvio (campo dogmático), mas apenas no recurso narrativo, folclórico onde uma das justificativas para tal evento cataclísmico seria a união sexual entre um grupo de seres celestes e mulheres. Os B’nei Elohim, traduzido como “anjos” em algumas versões, são seres que podem habitar o mundo dos deuses, não necessariamente anjos, no sentido em que entendemos hoje em dia.
A história dos Nephilim é contada e recontada com mais propriedade na literatura apócrifa do período que conhecemos como judaísmo do segundo templo. Essa religião do segundo templo absorveu com mais ênfase aspectos do pensamento persa, egípcio e o próprio folclore hebreu/cananeu antigo é retomado e revisto. A relação causa e efeito agora torna-se uma constante na explicação de fenômenos históricos, onde o metafisico entra no mundo físico. Numa área conhecida, como historiosofia, aquilo que está por trás das histórias contadas.
Os livros de Enoque (1Enoque) e o Livro do Jubileu são literaturas que mencionam a possível origem dos Nephilim. Na literatura enoquita está escrito que 200 seres celestes, chamados de sentinelas coabitaram com mulheres e geraram os Nephilim. Esses seres, sentinelas, também ensinaram às mulheres a mística, encantamentos e como usar plantas e raízes para a cura, além da arte das pinturas, adereços e cosmética. O livro canônico de Daniel também apresenta a palavra sentinela para referir-se a uma classificação de ser angelical. O livro de Enoque relata ainda que os sentinelas foram punidos, aprisionados em correntes num abismo e no Dia do Messias, serão julgados e condenados.
No Livro dos jubileus é relatada a suposta origem, caráter e julgamento dos nephilim. No dia do juízo final. O desenvolvimento da história narrada no livro diz que os espíritos deles transformaram-se em demônios. O Livro do jubileu também confirma a tese que a presença da maldade dos nephilim causou um desiquilíbrio cósmico na criação e Javé não teve uma alternativa a não ser o dilúvio que destruiria o avanço dessas criaturas. A presença dos Nephilim no mundo traria a maldade e segredos que os humanos não poderiam saber.
Na narrativa bíblica parece existir descendentes dos nefilim ainda em terras cananeias a serem conquistadas, na contação de história do êxodo e os habitantes de Canaã e até no mítico embate do jovem Davi e o famoso gigante Golias. Seriam os nefilim, gigantes ou apenas homens sanguinários? De todos os modos, estamos vendo nessa série que alguns dos monstros relatados nas histórias do imaginário hebreu são mais humanos que bestiais.
Ziz (זיז) (Salmos 50:11)
יאיָדַעְתִּי כָּל־ע֣וֹף הָרִ֑ים וְזִ֥יז שָֹ֜דַ֗י עִמָּדִֽ
“Eu conheço todas as aves das montanhas e as Ziz dos campos [são] minhas.” (tradução minha)
Estamos em nosso terceiro episódio da série monstros bíblicos e hoje vamos falar de um dos pets de Javé menos conhecidos, a ave Ziz.
“Aconteceu uma vez que um viajante em sua embarcação viu um pássaro. Quando essa ave se levantou das águas, as águas cobriam apenas suas pernas e sua cabeça tocava o céu. Os que a viram pensaram que as águas não eram profundas naquele ponto e pensaram que podiam se banharem ali. O pássaro que os viajantes viram, não era outro, se não o Ziz. Suas asas são tão grandes que podem encobrir a luz do sol. Elas (asas) protegem a terra contra os ventos do sul; sem a ajuda das asas de Ziz a terra não seria capaz de resistir aos ventos que sopram do sul. O fluido delas uma vez inundou sessenta cidades e o seu revoar destruiu trezentos cedros”.
( Haggadot judaica-Tradução livre)
Ziz é um animal grifo da mitologia judaica, é dito que com suas asas é capaz de cobrir a luz do sol. É uma das bestas primevas criadas por Javé e domina sobre os céus e seus dois consortes Leviatã e Behemoth governam sobre as águas e a terra respectivamente.
Ziz foi também criado no quinto dia, juntamente com as outras bestas primevas. Ziz era quem dominava os céus. Pode ter tido influência das histórias sumério-acadianas, assírias, e até mesmo dos persas. Em histórias como a de Lamassu, que era uma divindade feminina protetora, representada em amuletos, portais e palavras de encantamento.
Na mitologia suméria havia uma divindade híbrida homem-pássaro chamada Anzu, que pode também ter dado origem a Ziz. Anzu era o guardião dos céus e a personificação dos ventos do sul. Anzu causava medo e terror em muitos deuses e apenas o poderoso deus Marduk foi capaz de derrotar a grande ave. Anzu aparece em embates na Epopéia de Gilgamesh. Anzu pode ter sido a narrativa influenciadora para a fênix grega bem como de Ziz, na mitologia hebreia.
A figura bíblica/hebraica dos querubim também podem ter tido influência na língua acadiana-suméria, a palavra que deu origem pode significar: portador de bençãos, e tinham um papel protetor, tais como os leões chineses presentes até os dias de hoje em vários lugares na China nas entradas de cidades e locais importantes.
As histórias contadas da mitologia sumério-acadiana espalharam-se desde o crescente fértil, à península arábica e chegaram até ao levante mediterrâneo.
Na sua função linguística mitológica em um determinado momento Ziz, simbolizou o império persa e a sua religião, o zoroastrismo. A religião persa, assim como as histórias do império acadiano, influenciou vários povos, inclusive mitologias hindus como a ave mitológica garuda, símbolo de países como a Indonésia, nos dias de hoje.
Ziz assim como Leviatã e Behemoth estará presente no Dia do Messias, será parte do banquete servido aos justos por Javé. Diferentemente de Leviatã e Behemoth a Ziz foi mantida a capacidade de procriação. É dito que Ziz punha ovos e uma vez um de seus ovos quebrou e com o líquido desse ovo, sessenta cidades foram destruídas. A extensão das asas de Ziz era tão grande que podia cobrir toda a terra e encobrir a luz do sol.
Ziz controla os ventos, as aves dos céus e causa tempestades. Controlando elementos da natureza e destruindo cidades inteiras com um simples revoar de suas asas.
Série Monstros Bíblicos
Episódio 1 - Behemoth
Behemoth (בהמות) – É um animal mitológico queaparece no livro de Jó 40:15-24. Pesquisadores tentam encontrar paralelos fora dos textos bíblicos sobre esse animal mitológico relacionando-o com um hipopótamo, uma espécie de mamute-elefante, ou até mesmo um dinossauro. Era desconhecido do público ocidental até por volta do século 18 quando os textos bíblicos começaram a ser lidos de maneira mais crítica.
O substantivo masculino plural (o dito plural majestoso) Behemoth em hebraico, pode ser traduzido como algum tipo de animal bovino. O sufixo (moth) indica gênero masculino ao substantivo em sua forma plural. Esse substantivo/nome não aparece em nenhuma outra literatura antiga, a não ser os textos bíblicos em seu gênero literário, mitologia-poética.
Behemoth não tem paralelo direto com o Touro Celeste que aparece no Épico de Gilgamesh e nem com os “Homens-touro” da Mesopotâmia (Assíria). O paralelo mais próximo é com Atik-Ars(h), o Bezerro de El. São mitologias distintas, mas os seres apresentam algum paralelo.
O texto ugarítico diz: (Tradução livre)
“Eu derrubo a serpente tortuosa, a poderosa com sete cabeças. (41:42)
Eu derrubo Ars(h), o amado de El. Eu destruí Atik, bezerro de El. (43-44)
Eu derrubo Fogo, cão de El. Eu aniquilo Chama, filha de El.” (45-47)
KTU 1.3 III.41-47
Ainda no texto ugarítico KTU também está escrito:
KTU 1.6
50: No mar estão Ars(h) e o dragão,
51: Que Kothar-ha-Hasis os afugente.
52: Que Kothar-há-Hasis os despedace.
KTU 1.6 – Ugarit – Museu do Louvre.
Behemot é o par masculino de outro ser que falaremos no próximo episódio: Leviatã. Behemot na literatura apocalíptica judaica é descrito como um animal caótico. Javé, impediu que o mesmo procriasse com Leviatã, pois o fruto desse acasalamento seria a destruição da criação de Javé.
No livro de 1 Enoque Behemoth foi o primeiro animal a caminhar sobre a terra recém criada. Ainda no livro de Enoque é descrito que Behemoth habita num deserto invisível a leste do Jardim do Éden, o deserto de Dendayen.
“ E naquele dia, se separarão dois monstros; uma fêmea chamada Leviatã, que habita nas profundezas das águas, acima das fontes das águas; E um macho chamado Behemoth; que com seus peitos, ocupará um deserto invisível, chamado Dendayen ao leste do jardim, onde os justos e eleitos habitarão...”
(Livro de 1 Enoque 58:7-9) – Tradução Minha
O Livro de orações judaicas o Siddur, traz uma oração/profecia para o Dia de Javé.
“Leviatã e Behemoth se engancharão com os seus chifres... Seu Criador se aproximará e com a sua espada poderosa matará a ambos. Assim, do lindo couro de Leviatã Javé construirá as tendas para abrigar o justo, que comerá da carne de Leviatã e Behemoth com alegria e regojizo em um enorme banquete que será dado aos justos e eleitos”.
(Siddur, P.719) Tradução Livre
Behemoth nas lendas antigas de cosmogonias é um par mítico de Leviatã que simboliza o caos das águas. Behemoth, simboliza um caos na terra, na natureza. Uma força que se descontrola trazendo destruição, derramamento de sangue e extinção de outras espécies. Dada sua agressividade vive fora do convívio da humanidade, num deserto mítico enorme. Faz parte da categoria dos pets de Javé.
Na cultura pop Behemoth é descrito através de jogos de vídeo-game, de bandas de rock e de confrontos bestiais como no épico embate com Godzilla. Behemoth tornou-se também um adjetivo que significa algo enorme, de proporções monstruosas.
Referências Bibliográficas
Introdução à teologia do templo – Margaret Baker
O profeta perdido: O livro de Enoque e sua influência sobre o cristianismo – Margaret Baker
Introdução ao misticismo do templo – Margaret Baker
King of the Jews: Temple Theology in John’s Gospel – Margaret Baker
Livro de Enoque – Fonte Editorial
Sidur completo – Tradução e Transliteração – Sêfer Editora
The Ugaritic Baal Cycle – Mark Smith
No nosso segundo episódio conversaremos sobre o messianismo tecnológico e uma analogia à figura messiânica de Neo no filme Matrix e a jornada do herói descrita pelo antropólogo e mitólogo Joseph Campbell. Explicaremos um pouco sobre as etapas dessa jornada do monomito e faremos alguns paralelos ao campo religioso/mitológico/narrativo.
Obrigado por ouvir o Podcast Calango Sagrado
Áudio da Live Multiversos e o Mundo Bíblico que foi ao ar no dia 29.04.2022. Um bate papo informal sobre linguagem mitológica/teológica e os vários multiversos presentes na cosmologia dos textos da Bíblia Hebraica e algumas porções do Novo Testamento.
Wellington & Angela são teólogos, filólogos e ambos linguistas.
Disclaimer: A abordagem aos textos e narrativas bíblicas não estão baseadas nas lentes doutrinárias e/ou dogmáticas e nem de fé. São leituras de eventos baseados nas narrativa como instrumento comunicativo, seus discursos, personagens e relação ou não-relação com a realidade/contexto histórico de seu momento de escrita.