O Escritor está em casa, sentado diante de uma mesa, com as mãos sobre o teclado do computador. Na sua casa de adulto, escreve sobre a sua casa de infância, onde o pai esteve doente. Olha para as palavras que escreve, nascem letra a letra, dentro dele e fora dele.
Quando o meu pai ficava internado no hospital, guardava as caixinhas de doce para dar-me.
Quase no fim do encontro, antes de nos despedirmos, Daniel quis mostrar-me algumas cicatrizes. Levantou a roupa e, no tronco, costas e peito, tinha linhas de pele mais escura, umas maiores do que outras.
A sala está desfeita, ocupada por caixas de papelão abertas, objetos desirmanados que ficaram para último, paredes despidas, uma lâmpada sem candeeiro, pendurada no centro do teto. Imóvel na penumbra, em silêncio, a mulher vê-o afastar-se. A luz da tarde encontra caminhos para entrar com brandura na sala, avança pelas janelas, através das cortinas, avança pela porta, misturada com os sons de Maputo que, a esta hora, neste ponto da cidade, começam a amainar.
Marcámos encontro debaixo das letras do edifício principal. Como em todas as vezes, o médico recebeu-me com um sorriso otimista, estendeu a mão com gosto. Apenas trocámospalavras de ocasião, mas a postura parecia dizer: estamos aqui, continuamos aqui, há tanta esperança no mundo. E não perdemos tempo, iniciámos o caminho para o consultório da psicóloga. Caminhávamos no passeio, à margem dos carros estacionados, dos carros que seguiam muito devagar, à procura de estacionamento. Então, sem omitir termos clínicos e anatómicos, começou a contar-me a cirurgia que acabara de realizar.
O ar da carpintaria era nítido, pontos de serradura flutuavam como galáxias, o universo movia-se devagar. As máquinasestavam paradas. No silêncio, o meu pai seria capaz de distinguir com facilidade o som das máquinas no momento em que eram desligadas, barulho a diminuir durante minutos, as lâminas a rodarem com cada vez menos velocidade, mas o meu pai estava a arrumar a bancada, compenetrado nesse serviço, a guardar as ferramentas que usou nessa tarde.
Filipe sabia os números todos: a distância de cada circuito, a média de ultrapassagens por corrida, o recorde da volta mais rápida, o número de pódios de cada piloto, de pole positions, os pontos acumulados, a velocidade média, o consumo de combustível por volta e por corrida, o tempo de pit stop, os cavalos de potência do motor. Filipe entusiasmava-se com essa exatidão.
Recebi um telefonema a meio da tarde, número desconhecido, atendi e escutei uma voz cordial, que se apresentou como médico, cirurgião torácico no IPO do Porto, Instituto Português de Oncologia.
As vozes ecoam no pavilhão, jogadores que pedem a bola, que incentivam os que levam a bola ou, perante esses, que organizam a defesa. O pavilhão tem muita área para as vozes se espalharem, lançadas de pontos aleatórios, também a voz do treinador, que entra pelo campo às vezes, que grita enquanto bate palmas para apressá-los. E a estridência das sapatilhas, comparável a pequenos mamíferos em sofrimento, a guincharem, as sapatilhas que correm e que, de repente, tenta colar-se ao piso, que fintam corpos, que procuram apoio para o voo do remate.
Eu estava dentro do carro, protegido, e observava o que acontecia lá fora. As pessoas passavam sem me imaginarem. Eu estava dentro do carro, como se estivesse dentro do livro.