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Porque cantar é um subterrâneo.
Depois é um pátio.
Herberto Helder,
“Poemacto I”
luiza gianesella nasceu em 1987 em são paulo/sp, onde (ainda) vive, e é poeta lato sensu e (arte-) educ(omunic)adora.
foi finalista do VI Prêmio Jovem Literatura Latino-Americana (MEET - Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs de Saint-Nazaire) em 2008, com o livro de contos Solipsismo (inédito). tem textos publicados nas antologias Literatura Crônica (Andross, 2008) e Posfácios (Hecatombe, 2021) e nas revistas Dizpacho (edição independente, 2018) e agagê 80 (Borboleta Azul, 2020). entremarés é sua primeira publicação individual.
gianesella.wordpress.com
luiza.gianesella@gmail.com
@poetalatosensu
Foto: Pedro Nobrega (@salgadonobrega)
iv. posfácio (tríptico crítico)
por Anderson Antonangelo, Taynnã de C. Santos & Vitor Varella
apocalipse pretérito
mãe,
obrigada por ter parido
duas mulheres
no limiar do apocalipse.
não sei ao certo quando foi.
mas passou. e resta
um presente estendido,
força esgarçada.
quando acabar de cair essa noite
estarei ereta diante de uma porteira
ou de um portal,
olhos fixos nas estrelas.
que as conquistas sejam
muitas ou poucas,
não importa.
terei vivido a sobrevivência.
celebrado riso e canto.
caminhado de pés descalços
sobre esta espécie de brasa fria.
um lápis queima uma mão.
um olhar fustiga um rosto.
uma presença se faz turbilhão.
não havendo motivos para comemoração,
ao menos nos entreolharemos,
eu e os meus,
e nesse entreolhar dançaremos quietos
estaremos nus
e isso será oculto
pra qualquer olho que tudo veja.
enquanto se derreterem as calotas polares
haverá entre nós
uma teia luminosa de assombro
intocável.
partirei certa de ter estendido as mãos
e tentado olhar as coisas pelo seu através
– não debaixo, nem de cima.
certamente terei falhado mais do que não,
seja esse dia hoje
ou distante.
e não importa.
que a vida não se meça
com régua tão simples
e numa só direção.
no limiar do apocalipse pretérito
há ainda gatos,
cerveja e,
me parece,
poemas a escrever,
insights pela madrugada.
e tudo isso é bom.
mãe, obrigada.
testamento
o que tenho de mais valioso
simplesmente não se arrola
(a vida é menos escola que
fonte incessante de esmolas)
mas nessa labuta sem frutos
construo uma surda luta
se nada aqui é meu
nada que reste
— brasa no breu —
será alvo de disputa
que o silêncio que se siga
equivalha àquele
que nos bons momentos
pude e soube cultivar
(que seja um silêncio denso
prenhe de tudo
que ainda haja
por se desenrolar)
que só me seja dado
revis(it)ar
as horas de pura vazão
— mesmo se imersa
na lerda tarefa
das baias —
de algo de ócio espanto tesão e poesia
(amortização de mais-valia)
que eu (vocês) m(s)e lembre(m)
das mãos que estendi à vida
(não a outrem)
(troca vazia)
se eu partisse hoje iria
sem grandes arrependimentos
e com orgulho moderado
(que espero que até o fim
termine de ser minado)
pois conheci 78 cidades
e desde a constatação
de que o mundo é pequeno e vasto e fortuito
já não me parece muito
espero ao final ter poucas condecorações
(ou nenhuma)
e tudo por celebrar(mos)
— espuma e não em suma
monções e não mansões —
que o que quer que reste
não seja ou(l)vido
(basta de traça e eco)
mas sirva de espelho ponte ou fonte
(ponte pra fonte
fonte de pontes
— um estranho espelho opaco
em descalabro)
me diz um amigo
— mais vale escrever
que ser publicada
envergonhada leio
— mais vale morrer
que ser enterrada
efeméride
faz um ano que digo esta frase
sem metáforas atenuantes:
minha mãe morreu
há um ano fotografei
um reflexo de luz fria
na pedra fria
do chão do hospital
retrato de plena
agonia?
mas talvez também
reconhecimento?
e concretização?
do que já se sabia
que viria?
talvez ainda um mínimo
reconhecimento
de beleza?
tentativa mínima
de criação
dentro do limite possível
então
do afeto?
temi o dia de hoje
como se temem as efemérides malditas
ou as benditas
transfiguradas após tragédia
distância
ou partida:
como se fora
o anunciado apodrecimento
de uma fruta boa
ou um rastro incômodo
órgão vestigial
de um bicho estranho
que um dia houve
temi essa efeméride e essa imagem
como se caso ressurgissem
reciclassem somente
dor
lições da minha mãe
à beira da morte
mas também antes e sempre
nas frestas e lidas
de como existia:
morre-se um pouco a cada dia
e há beleza na vida
toda efeméride é
efeméride de morte
e toda efeméride é
também
bela
— questão de calibrar o olhar
moldá-lo ao afeto que se pretende
cultivar
(e ao contrário
do que pensava
tal operação
não embota a vista
nem distorce o fato:
vista e fato:
filhotes do afeto)
e assim caminho
sem temor, mesmo
que um pouco mais
sozinha
gérmen
há uma semana
morreu uma mãe
em porto alegre
quando morre uma mãe
é um pouco a morte
de uma semente germinada
permanece uma lembrança
e mais uma genética
e mais uma espécie
de esperança
morte por desespero /
um desespero à beira da
morte
depois somente apa-
tias
uma espécie de silêncio cal-
marias
em fotos um congelamento
de gestos em áudios rediviva
vibração em textos caligrafia já
sem peso superada
dicção
somos um pouco irmãs nós
todas as filhas de mães
mortas
num laço de sangue derr-
amado ou estancado
alheio porém
nosso (herança
sanguino-
lenta)
quisera eu meu gesto
que em grande medida des-
conheço a todas as filhas de mães
mortas
alcançasse suave e num
afago ou num simples
pousar de mãos sobre
ombros ou mesmo talvez so-
mente num aceno um pouco
distante servisse não como um con-
solo mas talvez como um
atestado de compreen-
são aqui as únicas coisas possíveis
estender as mãos às mães mortas
através de suas fi(o)lhas soltas talvez
retomar o gérmen perdido no
peito uma possibil-
idade passageira de
passado(a)
réquiem para minha mãe
viver um carnaval
deveria ser algo como
uma euforia alforriada
no entanto sinto a vida escorrer
como a água escorre de uma pedra de gelo
que queima o interior de um punho cerrado
respirar me parece a cada dia
menos automático
todos os futuros projetados
me parecem longos demais
tudo por fazer e tudo
tão importante
e em 31 anos mal aprendi
a tocar alguém (...)
---
o texto completo não cabe no máximo de caracteres permitido nesta legenda. ele pode ser acessado na íntegra em https://gianesella.wordpress.com/2021/09/04/requiem-para-minha-mae/
morte
esta noite sonhei a morte
a morte era uma baleia branca
já morta
impedida de descer às profundezas
por ahmad, um jovem
jamal, amigo de ahmad,
como aliás cabe a todo pianista de jazz,
acompanhava ahmad submerso
montado nas costas da baleia
enquanto afundavam lenta e paulatinamente
debatiam a natureza das coisas
e suas conjecturas formavam corrente ascendente
— imagino-a quente —
contrabalanceando a inexorável gravidade
jamal um pouco condescendente
consciente de que aquilo
não podia durar
ahmad falsamente tranquilo
mão direita na barbatana dorsal
— caída —
e mão esquerda erguida
— em descurso
(e a morte aos poucos se putrefaz
em espiral descendente
impedida de morrer de fato
envolta num morrer latente
no oxímoro de um lento turbilhão)
até que algo
— algo não súbito
mas decerto conclusivo —
obriga ahmad e jamal
a baixarem as cabeças
em reverência ou desistência
restituindo tudo
aos seus ritmos normais
à necessária vazão
à tromba d’água
sob a(o)s vaga(o)s
enquanto soam fortes
rumo às fossas abissais
em acorde dissonante
todos os metais
os homens que amarei, III
sou grata às melodias que eu alcanço
– pois tudo o que lanço fere e lava.
agradeço às palavras de outra parte,
e àquilo que por arte renasceu
tornando-se apogeu adolescente
de um amor ainda latente e já maduro,
outrora espelho escuro e agora dia.
sou grata às melodias que eu ressoo
– pois tudo o que apregoo fere e cura.
agradeço às loucuras de outra sorte,
e àquilo que por morte fez-se nada
tornando-se a chegada como em vulto
de um amor ainda oculto e já refeito,
outrora espelho estreito e agora via.
sou grata às melodias por que juro
– pois tudo o que conjuro fere e alcança.
agradeço à esperança de outras gentes,
e àquilo que contente fez-se festa
tornando-se uma fresta espantosa
pro amor ainda prosa e já cantado,
outrora espelho errado e agora cria.