
efeméride
faz um ano que digo esta frase
sem metáforas atenuantes:
minha mãe morreu
há um ano fotografei
um reflexo de luz fria
na pedra fria
do chão do hospital
retrato de plena
agonia?
mas talvez também
reconhecimento?
e concretização?
do que já se sabia
que viria?
talvez ainda um mínimo
reconhecimento
de beleza?
tentativa mínima
de criação
dentro do limite possível
então
do afeto?
temi o dia de hoje
como se temem as efemérides malditas
ou as benditas
transfiguradas após tragédia
distância
ou partida:
como se fora
o anunciado apodrecimento
de uma fruta boa
ou um rastro incômodo
órgão vestigial
de um bicho estranho
que um dia houve
temi essa efeméride e essa imagem
como se caso ressurgissem
reciclassem somente
dor
lições da minha mãe
à beira da morte
mas também antes e sempre
nas frestas e lidas
de como existia:
morre-se um pouco a cada dia
e há beleza na vida
toda efeméride é
efeméride de morte
e toda efeméride é
também
bela
— questão de calibrar o olhar
moldá-lo ao afeto que se pretende
cultivar
(e ao contrário
do que pensava
tal operação
não embota a vista
nem distorce o fato:
vista e fato:
filhotes do afeto)
e assim caminho
sem temor, mesmo
que um pouco mais
sozinha