Numa tentativa de definir o que arqueulogia é, cheguei à ideia de que existem partículas quânticas de identidade que permanecem, aguardando a descoberta de quem se queira atrever a procurar e investigar numa arqueologia do seu ser. O último capítulo do livro “Arqueulogia” tem o título de “Autogenesis” e foi desse título que parti novamente, desta vez uma reflexão sobre o presente a partir da obra Arqueulogia. Foi assim que nasceu este podcast.

Bizâncio, Constantinopla e Istambul serão diferentes nomes para a mesma cidade ou diferentes cidades que existiram no mesmo espaço ao longo do tempo? Quando um povo ocupa um lugar onde já vivia gente, acaba por reconstruir esse lugar numa mistura do que já existia com o que é novo. Coexistem então os escombros, as fundações e os edifícios à superfície da terra. Adossam-se os prédios, ruas e estátuas ao terreno e à velha cidade. Os palácios e monumentos são sacrificados: os primeiros recebem n...

Durante cinco milénios este chão foi escavado por romanos, fenícios, visigodos e outros tantos povos. Mas a revolução industrial revolucionou também as minas. No século XIX os ingleses chegaram com a Rio Tinto Company para criar uma espécie de colónia (...). Criaram um enclave britânico, uma rica ilha em terra, rodeada da pobreza das populações espanholas que trabalhavam para extrair os metais. A mineração escavou o chão e escavou divisões sociais. Há ainda hoje um misto de orgulho pelo...

Sentado no que resta do palácio real, olhei para sul, imaginando a brutalidade da distância que houve que percorrer para chegar de Hattuša a Kadesh, o lugar onde Ramsés II, faraó do Egito e Muwatalli II, rei dos hititas se defrontaram com os seus exércitos. Como que a atestar a futilidade do meu épico delírio, passaram no sopé do palácio em ruínas umas vacas em rebanho, comendo erva onde reis e diplomatas pisaram o chão.

Ruína desde a primeira hora, o sanatório de Grandella ali ficou mais de um século, incompleto. Com uma porta de entrada larga e um conjunto de salas que nunca foram utilizadas para nada senão para alimentar mitos e lendas.

Hoje, em Iznik, o lago espelha um céu tranquilo e as pedras pardas estão gastas pelo tempo. As memórias que pairam no ar são as a do debate acalorado, das heresias condenadas, de imperadores que quiseram perpetuar crenças em decretos. Mas também fica a ideia que as comunidades vivem frequentemente à margem das decisões dos poderes instalados e que a fé se vive a maior parte do tempo longe dos palácios, dos concílios e até dos templos.

Quem teve a honra de conhecer Eduardo Gageiro, sabe que as histórias que ele gostava de desvelar são o que explica a fotografia, são o que motiva a decisão de enquadrar aquelas pessoas e de carregar no botão de disparo naquele momento exato. E isso foi o que fez dele um fotógrafo ímpar. Ser um homem ímpar, inserido no seu povo, no seu tempo. Mas a produzir um trabalho que ficou e ficará para lá do tempo.

A ganância, o ódio e a arrogância levaram à construção metódica e precisa de campos de extermínio, fábricas de morte. A cobardia, o egoísmo e o medo da justiça levaram à rápida destruição desses campos e à criação de ruínas que são problemáticas. São pontos de interrogação na paisagem de um continente que se julgava e julga coletivamente farol de direitos humanos.

O poder é por vezes símbolo apenas. Ilusão. Como a fachada do palácio de Manique do Intendente que foi um dia do intendente Manique. Aquela aldeia tornada vila por decreto real não chegou a ser capital de um país, como o seu fundador sonhou. As promessas feitas de lugares de poder são frequentemente desligadas da realidade, vítimas da distância entre quem manda e quem é mandado.

O anfiteatro de El Jem é uma ruína de resistência. Um vestígio arqueológico que não foi resgatado à terra ou às areias do deserto. Mas antes um conjunto de pedras organizadas que teimou em desfazer-se, em voltar a fundir-se com a paisagem.

Troia não é apenas uma ideia. Lá longe, onde os aqueus de longos cabelos e belas cnémides acostaram os seus barcos, há ainda hoje uma cidade onde já não há heróis, mas persiste o peso da mistura entre História e Mitologia. Existirão poucos lugares onde essa sobreposição seja tão intrincada.

A cidade tem uma continuidade através do Tempo, como cada um de nós tem marcas de identidade que atravessam a nossa história individual. Tanto nós, como a cidade, estamos sujeitos a existir apenas no momento presente, constantemente entalados entre passado e futuro. À medida que a malha urbana se transforma, vamos analisando o passado e planeando o futuro, numa fuga permanente ao único tempo em que verdadeiramente sentimos existir. Agora. Assim é também com a nossa identidade. Na arqueo...

Os parques e os jardins de uma cidade servem também para nos lembrar do que perdemos quando construímos o nosso mundo aparte do que é natural no Mundo. Servem para nos religarmos ao que é natural e selvagem, paradoxalmente encontrando paz e conforto.

Os mercados são espaços em que cada um de nós é convidado a transformar a sua individualidade em transações, em aquisições, como se as coisas materiais que ensacamos fossem uma extensão de nós. Mas são também espaço de encontro, pois uma boa parte das necessidades e gostos individuais é comum a outros indivíduos que, como nós, acorrem às estações do dia a dia urbano, aos templos do consumo, aos fóruns onde tão depressa nos cruzamos com caras conhecidas como gozamos de um anonimato no mei...

Tanto no campo como na cidade há vestígios de outros tempos, objetos brônzeos que tocam no alto das torres sineiras marcando horas, cerimónias de alegria e de tristeza, assinalando rituais. Sempre os rituais. Os sinos são relógios que não precisamos de ver.

Todas as vezes em que desejámos “boas festas” a alguém eram já uma festa também. Eram a celebração de estar vivo e um pouco menos só quando alguém despende de uns segundos para uma frase feita e previsível que reorganiza o caos e o absurdo, gerando algo familiar, conhecido e seguro.O que celebramos afinal, no Natal ou noutra festa qualquer é, acima das outras camadas culturais, religiosas e políticas, o estarmos vivos e acompanhados.Nota: este episódio contém fragmentos do episódio "Rituais".

Há homenagens de pedra e de metal nas esquinas que dão nome aos lugares onde mora gente, onde os estafetas entregam encomendas, onde os negócios têm morada. O sucesso de um negócio é também o sucesso de um nome gravado na pedra ao topo da rua. Há praças e avenidas cujo nome conhecemos por ouvir repetidamente como referência espacial.

Comunicar é preciso. Seja o que for. Mas estas linhas que nos unem também nos afastam, cada um no seu retângulo. Cada um fechado em sua casa, e dentro de casas cada um no seu ecrã. Cá fora os pássaros parecem não se deter nestes considerandos. Param nos cabos sem escutar notícias ou conversas.

As cidades são por vezes chamadas de “selva urbana”. A expressão é pouco adequada pois pouco há de natural numa cidade, em qualquer cidade. A natureza, quando existe, está em parques e jardins, ordenada, confinada e aparada. É como uma réplica de natureza, o produto do humano a imitar o natural.

Nunca tinha pensado sobre o outro lado de uma trotineta de uso partilhado, o lado de baixo. Riscado, mas pintado da mesma cor que tinge o resto da máquina, há um ventre onde se guarda eletricidade para disponibilizar (mediante pedido e pagamento) a quem quiser ir de A para B. Ou de A para A, pois à trotineta e à empresa fornecedora de serviços tanto se dá que o caminho seja de progresso ou em círculos. Uma curta viagem como metáfora da vida.