
Suspensão de Crença (conceito proposto por Fernando Scalabrini)
Na convivência social com pessoas com deficiência, observa-se um fenômeno recorrente: apesar de testemunharem concretamente a autonomia, a competência e a vida plena de uma pessoa com deficiência, muitos indivíduos recusam simbolicamente essa realidade, insistindo em tratá-la como incapaz, infantilizada ou permanentemente dependente.
Proponho nomear esse mecanismo de suspensão de crença : trata-se da operação psíquica pela qual o sujeito preconceituoso, ao invés de integrar a evidência perceptiva (uma pessoa com deficiência vivendo como qualquer outra), suspende a crença naquilo que vê para sustentar a fantasia capacitista.
Esse movimento pode ser ancorado em conceitos psicanalíticos clássicos: • Em Freud, aproxima-se do Verleugnung (desmentido): o sujeito percebe a realidade, mas nega seu significado, mantendo uma crença que lhe é mais confortável.
• Em Lacan, ecoa a lógica do “je sais bien, mais quand même” (“eu sei muito bem, mas mesmo assim…”): o indivíduo sabe que a pessoa com deficiência é capaz, mas ainda assim a reduz à condição de incapaz.
• Psicologicamente, isso produz uma forma de dissonância cognitiva : entre o que é visto (capacidade) e o que é acreditado (incapacidade), o preconceituoso resolve a tensão “desligando” a crença na realidade. A suspensão de crença, portanto, é o ato deliberado — ainda que inconsciente — de rejeitar a humanidade plena do outro . Ela não nasce da ignorância pura, mas da manutenção ativa do preconceito, que exige a recusa da realidade.
Assim, o capacitismo não é apenas falta de informação ou de convivência, mas também uma operação psíquica de defesa: para sustentar a fantasia de superioridade do “normal”, o sujeito precisa suspender a crença no que vê, recusar a igualdade, infantilizar o outro.